sexta-feira, 9 de julho de 2010

Entrevista: Cezar Peluso

O destaque das notícias da área jurídica no último dia 03, foi a entrevista concedida à revista Veja, pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso. Ele atribuiu a demora dos julgamentos ao volume desnecessário de trabalho que é levado ao Judiciário.

Além das empresas, que segundo Peluso poderiam encontrar soluções para os conflitos com os próprios consumidores - o ministro também entende que a administração pública, maior cliente do Judiciário, poderia abrir mão de recursos, nos casos em que sabe que vai perder.

Peluso disse, ainda, que é humanamente inconcebível para um ministro trabalhar em todos os processos que recebe, pois ninguém dá conta de analisar 10 mil ações em um ano. A entrevista foi realizada pela jornalista Laura Diniz.

O presidente do Supremo Tribunal Federal admite que o excesso de processos que chegam à corte faz com que parte das decisões fique nas mãos de assessores técnicos . Durante quase toda a sua vida, o paulista Cezar Peluso esteve diante de um problema. Ou melhor, de vários. Aos 26 anos de idade, já era juiz de direito. Hoje, aos 67, preside a mais alta corte do país (STF), onde deságuam os mais importantes conflitos da nação.

Criticou a atuação de promotores, juízes de primeira instância e mesmo a de colegas do STF. Falou sobre temas que magistrados costumam evitar a todo custo - como o fato de, no Brasil, os ricos terem mais chances de escapar da cadeia do que os pobres - e admitiu: os ministros do Supremo vivem tão assoberbados que não conseguem ler todos os processos que lhes caem nas mãos. Acabam tendo de delegar a assessores parte das decisões que deveriam tomar.

Veja - O maior problema da Justiça brasileira é a lentidão. Por que os tribunais levam até dez anos para julgar um processo?

Peluso - Em primeiro lugar, há um volume desnecessário de trabalho no sistema judiciário, provocado sobretudo pelas grandes empresas - especialmente nos casos em que elas são processadas por seus clientes. Mesmo quando não têm razão, elas apresentam inúmeros recursos para adiar a definição dos processos. Fazem isso para postergar o pagamento das dívidas, quando poderiam identificar os pontos litigiosos, chegar a uma solução razoável com os consumidores e, assim, resolver as causas com que ficam nos entulhando. Essa situação onera o Judiciário e os cidadãos. Outro problema é a administração pública, o maior cliente do Judiciário. A exemplo das grandes empresas, os órgãos públicos recorrem em todos os casos em que se envolvem. De novo, não há por que ser assim. Eles também poderiam abrir mão dos recursos, ao menos nos casos em que sabidamente vão perder, dada a existência de processos anteriores semelhantes.
Mas as empresas e o governo só apresentam essa quantidade de recursos porque ela está prevista na lei.

Concordo. O nosso sistema jurídico oferece muitas oportunidades de recursos, especialmente porque é formado por muitas instâncias. Há quatro instâncias até que se chegue ao STF, o que é um absurdo. Normalmente, em outros países, são apenas duas instâncias. No Brasil, por causa disso, demora-se o tempo de uma geração até o Supremo decidir sobre algo.

Como impor limites ao número de recursos?

O Congresso está discutindo a reforma do Código de Processo Civil e do Código de Processo Penal. São eles que regem o andamento dos processos. Se essas reformas forem bem feitas, poderemos limitar o número de recursos e ganhar muito em agilidade.

No caso específico do Supremo Tribunal Federal, quais são os motivos da lentidão?

Temos uma Constituição extremamente analítica, com mais de 200 artigos e mais de cinquenta emendas. Praticamente qualquer causa pode ser levada ao Supremo, que é uma corte constitucional. Nos Estados Unidos, a Constituição tem sete artigos e 27 emendas. Eles julgam de noventa a 100 casos por ano. Nós julgamos mais de 120.000.

E qual seria a quantidade ideal?

Sendo generoso, umas cinquenta causas por mês para cada ministro. Isso daria 6.600 por ano, o que já seria um absurdo se comparado ao volume de trabalho da corte americana. Quando era presidente do STF (de 1995 a 1997), o ministro Sepúlveda Pertence foi a um encontro de presidentes de cortes constitucionaisna Itália. Cada um contava a história da corte do seu país. Na vez dele, o ministro relatou que o STF havia julgado 60.000 processos naquele ano. Na hora do café, um juiz americano lhe disse: "É preciso tomar cuidado com o seu tradutor. O senhor falou em 6.000 processos e ele traduziu como 60.000". Eles simplesmente não acreditam no volume de trabalho que temos aqui.

Os ministros leem todos os processos que julgam?

É humanamente inconcebível para um ministro trabalhar em todos os processos que recebe. Ninguém dá conta de analisar 10.000 ações em um ano. O que acontece? Você faz um modelo de decisão para determinado tema. Depois, a sua equipe de analistas reúne os casos análogos e aplica o seu entendimento. Acaba-se transferindo parte da responsabilidade do julgamento para os analistas. É claro que o ideal seria que o ministro examinasse detidamente todos os casos.

Isso prejudica a qualidade da decisão?

Não quero afirmar que isso sempre prejudica a qualidade da decisão, mas há o risco de isso ocorrer, e só o risco já é suficiente para tentarmos resolver o problema. Essa transferência de responsabilidade para as assessorias pode causar abusos. Não digo em relação ao STF, que é muito cioso de seus assessores. Refiro-me aos tribunais de segunda instância, em que o volume de trabalho também é enorme.

A súmula vinculante foi criada em 2004 para obrigar juízes de primeira instância a seguir as decisões do STF e evitar recursos desnecessários. Está funcionando?

A súmula vinculante é um ótimo mecanismo, porque tem de ser seguida tanto pelos juízes quanto pela administração pública. É um enunciado de entendimento já consolidado pelo Supremo. Poupa muito trabalho. Mas temos apenas 31 súmulas vinculantes. Deveria haver muito mais.
Outro mecanismo, o da "repercussão geral", fez com que, a partir de 2007, apenas casos de grande relevância fossem admitidos no STF. Qual é o resultado?

Graças a esse filtro, o número de casos que chegam ao Supremo caiu 40%. Mas, como eu disse, ainda são mais de 120.000 processos por ano. Poderíamos ser mais rigorosos ao aplicar a repercussão geral. Ocorre que alguns ministros entendem que qualquer recurso que envolva, por exemplo, matéria tributária tem repercussão geral. Eles alegam que, nesse caso, o número de pessoas atingidas costuma ser grande. Eu não compartilho desse entendimento.A meu ver, o universo de pessoas atingidas, por si só, não é suficiente para atender aos requisitos da repercussão geral. Há casos que atingem uma só pessoa, mas podem ter enorme importância para o país. Outros dizem respeito a 100.000 cidadãos, mas não têm repercussão alguma. Devemos pensar em adotar critérios mais objetivos e limitadores.
Alguns juízes de primeira instância desafiam o Supremo ao, por exemplo, mandar prender alguém quando o STF manda soltar. Às vezes, mesmo interpretações consolidadas do tribunal são contrariadas por instâncias inferiores. Por quê?

Alguns magistrados simplesmente desconhecem nossas decisões. Ninguém fica vendo a TV Justiça o dia todo para saber como o STF decide. Vou estudar uma forma de fazer com que decisões importantes do Supremo sejam comunicadas instantaneamente aos juízes do país inteiro. Mas há também uma explicação de natureza psicanalítica para a questão. Afinal, o que os tribunais superiores representam para os juízes? A autoridade paterna. Eu sei, eu fui juiz. Pensava: "É um absurdo o tribunal decidir desse jeito! Eles estão errados! Não podem me obrigar a segui-los!". Trata-se de um mau entendimento da independência. Mas o mais grave, e no que pouca gente presta atenção, é que, quando o juiz decide contrariamente ao STF, os que têm bons advogados conseguem chegar aqui e mudar a situação. Os outros, que não conseguem, acabam tendo uma sorte diferente. Isso se chama, na prática, iniquidade. Casos iguais, tratamentos diferentes. Sob o pretexto de resguardar a independência dos juízes, cria-se injustiça.

Recentemente, o senhor foi acusado de nepotismo por contratar um casal para cargos de confiança no Supremo. O que tem a dizer sobre isso?

Já dei explicações públicas suficientes. Não quero mais mexer nesse assunto. Você acha que eu nomearia um casal se entendesse que estava incorrendo em nepotismo? Claro que não. A súmula que estabelece as regras antinepotismo foi redigida muito rapidamente, sob a pressão de circunstâncias políticas. Do jeito que o texto ficou, se uma mulher trabalhar como servente num órgão da Receita Federal no Rio Grande do Sul, o marido dela não poderá trabalhar como servente num órgão do Ministério da Pesca no Amazonas, porque os dois estarão empregados pela mesma pessoa jurídica, que é a União. A ideia de nepotismo está ligada ao fato de a autoridade pública nomear um parente dela própria para um cargo. Isso viola a Constituição porque a administração pública tem de se reger pelos princípios da moralidade e da eficiência. Esse princípio não foi violado no exemplo que dei. Todos os ministros do Supremo reconhecem que a redação da súmula do nepotismo é deficiente. Cedo ou tarde, terá de ser refeita.
Costuma-se dizer que, no Brasil, se pode matar ao menos uma pessoa sem nunca ir para a cadeia. O que isso tem de verdadeiro?

Isso pode ser verdade, mas essa impunidade não deve ser atribuída aos juízes, porque são vários os fatores que constituem o sistema jurídico penal. Uma ação penal não começa com o magistrado. Começa na polícia, que faz um inquérito no qual o juiz não tem participação ativa. O Ministério Público tem, porque pode pedir diligências e provas.Se o promotor oferecer a denúncia e o juiz aceitá-la, o Ministério Público terá de reunir provas suficientes da existência do crime e da culpa do réu, para enfrentar a defesa. Se não houver provas suficientes, o juiz terá de absolver o réu. Só que ninguém dá atenção ao fato de que o promotor é que não as obteve. E é isso que muitas vezes ocorre.

Mas por que mesmo pessoas condenadas mediante provas consistentes escapam da cadeia?

Porque o sistema jurídico oferece uma série de alternativas para não levar as pessoas à cadeia sempre. E isso não é ruim. Nosso sistema carcerário tem casos escandalosos de desumanidade que, na minha visão, configuram crime do estado contra o cidadão. O Espírito Santo é um exemplo dessa situação. A menos que seja absolutamente necessário, não se deve mandar um criminoso para a cadeia. A prisão não deve funcionar como uma satisfação dessa pulsão primitiva que o ser humano tem pela vingança. Não podemos nos comportar como pré-históricos.

Mas como explicar o fato de um assassino confesso como o jornalista Antonio Pimenta Neves, condenado duas vezes, continuar em liberdade?

No caso dele, ainda há um recurso pendente de julgamento no Superior Tribunal de Justiça. Ele não pode cumprir pena porque a sentença não transitou em julgado, ou seja, ainda não houve um julgamento definitivo. Por enquanto, ele só poderia ficar preso preventivamente. Mas suponho que a prisão preventiva não se encaixe no caso dele. Eu não conheço o processo.
Mas um cidadão pobre que tivesse cometido o mesmo crime estaria preso.

Existe diferença entre uma defesa feita por um grande advogado e uma feita por um advogado de conhecimentos parcos? É óbvio que existe. Isso se reflete na condução de todos os processos. O problema não é os ricos contarem com bons advogados, e sim os pobres serem mal defendidos. Se você tem um advogado bom, ele pode fazer uma investigação paralela e produzir boas provas em favor do réu, uma defesa consistente, o que aumenta a possibilidade de seu cliente não ser condenado. Quem não tem disponibilidade de recursos pode ser prejudicado. Por isso, o STF é muito liberal em relação à admissão de habeas corpus. Se alguém escrever, ainda que seja um bilhete, pedindo habeas corpus, vamos examiná-lo, tamanha é a nossa preocupação em estender a todos as garantias individuais.

O senhor já se arrependeu de alguma decisão judicial?

Minha consciência nunca me deixou acordado por causa de alguma decisão, nem de absolvição, nem de condenação. Durmo tranquilo.

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