quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Voto, histórico, do ministro Celso de Mello.



Para aqueles que não acompanharam o julgamento da Ação Penal 470 , Mensalão, o voto do ministro Celso de Mello, com certeza um momento histórico na corte.

Fonte: Ricardo Setti
O histórico voto proferido pelo ministro Celso de Mello na sessão de julgamento do mensalão do dia 1º passado repercutiu intensamente, não apenas pela condição pessoal do ministro — – o decano do Supremo Tribunal Federal, ou seja, o ministro mais antigo no posto, no caso desde 1989 –, como por aquela que certamente foi, até agora, a manifestação condenatória mais veemente e rigorosa contra aqueles que assaltaram cofres públicos para comprar apoio político no Congresso.
Para os leitores que querem se aprofundar no assunto, portanto, achei relevante transcrever no blog alguns trechos da manifestação do respeitado ministro. Como de praxe, os ministros, ao votarem, se dirigem ao presidente da Corte, daí as várias referências ao “senhor presidente”.
Os grifos e destaque estão no voto original do ministro.
Vejam só:
“………………………………………………………
Entendo que o Ministério Público expôs na peça acusatória eventos delituosos revestidos de extrema gravidade e imputou aos réus ora em julgamento ações moralmente inescrupulosas e penalmente  ilícitas que culminaram, a partir de um projeto criminoso por eles  concebido eexecutado, em verdadeiro assalto à  Administração Pública, com graves e irreversíveis danos ao princípio  ético-jurídico da probidade administrativa e com sério comprometimento da dignidade da função pública, além de lesão a  valores outros, como a integridade do sistema financeiro nacional, a  paz pública, a credibilidade e a estabilidade da ordem  econômico-financeira do País, postos sob a imediata tutela jurídica do ordenamento penal.
……………………………………………………….
Quero registrar, neste ponto, Senhor Presidente, tal como  salienteiem voto anteriormente proferido neste Egrégio Plenário,  que o ato de corrupção constitui um gesto de perversão da ética do  poder e da ordem jurídica, cuja observância se impõe a todos os  cidadãos desta República que não tolera o poder que corrompe nem admite o poder que se deixa corromper.
Quem transgride tais mandamentos, não importando a sua posição  estamental, se patrícios ou plebeusgovernantes ou governados,  expõe-se à severidade das leis penais epor tais atos, o corruptor  e o corrupto devem ser punidos, exemplarmente, na forma da lei.
Este processo criminal revela a face sombria daqueles que,no controle do aparelho de Estado, transformaram a cultura da  transgressão em prática ordinária e desonesta de poder, como se o  exercício das instituições da República pudesse ser degradado a uma  função de mera satisfação instrumental de interesses governamentais ede desígnios pessoais.
Fácil constatar, portanto, considerados os diversos elementos  legitimamente produzidos nestes autos e claramente demonstrados pelo eminente Relator, que a conduta dos réus, notadamente daqueles que  ostentam ou ostentaram funções de governo, não importando se no  Poder Legislativo ou no Poder Executivo, maculouo próprio espírito  republicano.
Em assuntos de Estado e de Governo, nem o cinismo, nem o  pragmatismo, nem a ausência de senso ético, nem o oportunismo podem  justificar, quer juridicamente, quer moralmente, quer institucionalmente, práticas criminosas, como a corrupção  parlamentarou as ações corruptivas de altos dirigentes do Poder  Executivo ou de agremiações partidárias.
Extremamente precisa a observação, sempre erudita, do Professor  Celso Lafer, quando, ao discorrer sobre o espírito republicano,  acentua, a partir de Montesquieu, que “o princípio que explica a  dinâmica de uma República, ou seja, o sentimento que a faz durar e  prosperar, é a virtude. É nesse contexto que se pode dizer que a  motivação ética é de natureza republicana. Isso passa (…) pela  virtude civil do desejo de viver com dignidade e pressupõe que  ninguém poderá viver com dignidade numa comunidade política corrompida”.
……………………………………………………….

É por isso, Senhores Ministros, que a concepção republicana de poder mostra-se absolutamente incompatível com qualquer prática governamental tendente a restaurar a inaceitável teoria do Estado  patrimonial.
Com o objetivo de proteger valores fundamentais, Senhor Presidente, tais como se qualificam aqueles consagrados nos  princípios da transparência, da igualdade, da moralidade e da  impessoalidade, o sistema constitucional instituiu normas e estabeleceu diretrizes destinadas a obstar práticas que culminempor patrimonializar o poder governamental, convertendo-o, em razão de  uma inadmissível inversão dos postulados republicanos, em verdadeira “res domestica”, degradando-o, assim, à condição subalterna de  instrumento de mera dominação do Estado,vocacionado, não a servir  ao interesse público e ao bem comum,mas, antes, a atuar como incompreensível e inaceitável meio de satisfazer conveniências  pessoais e de realizar aspirações governamentais e partidárias.
……………………………………………………….

O fato é um só, Senhor Presidente: quem tem o poder e a força do Estado, em suas mãos, não tem o direito de exercer, em seu próprio benefício, a autoridade que lhe é conferida pelas leis da República.
A gravidade da corrupção governamental, inclusive aquela  praticada no Parlamento da República, evidencia-se pelas múltiplas  consequências que dela decorrem, tanto aquelas que se projetam no  plano da criminalidade oficial quanto as que se revelam na esfera  civil (afinal, o ato de corrupção traduz um gesto de improbidade  administrativa) e, também, no âmbito político-institucional, na  medida em que a percepção de vantagens indevidas representa um  ilícito constitucional, pois, segundo prescreve o art. 55, § 1º, da  Constituição, a percepção de vantagens indevidas revela um ato  atentatório ao decoro parlamentar, apto, por si só, a legitimar a  perda do mandato legislativo, independentemente de prévia condenação  criminal.
A ordem jurídica, Senhor Presidente, não pode permanecer indiferente a condutas de membros do Congresso Nacional  ou de  quaisquer outras autoridades da República – que hajameventualmente  incidido em censuráveis desvios éticos e reprováveistransgressões  criminosas, no desempenho da elevada função de representação  política do Povo brasileiro.
Sabemos todos que o cidadão tem o direito de exigir que o Estado  seja dirigido por administradores íntegros, por legisladores probos e por juízes incorruptíveis.
O direito ao governo honesto – nunca é demasiado reconhecê-lo – traduz uma prerrogativa insuprimível da cidadania.
A imputação, a qualquer membro do Congresso Nacional, de atos que importem em transgressão ao decoro parlamentar revela-se fato  que assume, perante o corpo de cidadãos, a maior gravidade, a  exigir, por isso mesmo, por efeito de imposição ética emanada de um dosdogmas essenciais da República, a repulsa por parte do Estado,  tanto mais se se considerar que o Parlamento recebeu, dos cidadãos,  não só o poder de representação política e a competência para  legislar,mas, também, o mandato para fiscalizar os órgãos e agentes  dos demais Poderes.
Vê-se, nesse ponto, a íntima correlação entre a própria  Constituição da República, em face de que prescreve o seu art. 55, § 1º, e a legislação penal.
Qualquer ato de ofensa ao decoro parlamentar, como a aceitação  criminosa de suborno, culmina por atingir, injustamente, a própria respeitabilidade institucional do Poder Legislativo, residindo,  nesse ponto, a legitimidade ético-jurídica do procedimento constitucional de cassação do mandato parlamentar, em ordem a excluir, da comunhão dos legisladores, aquele – qualquer que seja –que se haja mostrado indigno do desempenho da magna função de representar o Povo, de formular a legislação da República e de controlar as instâncias governamentais do poder.
……………………………………………………….
Importante destacar, Senhor Presidente, asgravíssimas consequências que resultam do ato indigno (e criminoso) do parlamentar que comprovadamente vende o seu voto e que também comercializa a sua atuação legislativa em troca de dinheiro ou de outras indevidas vantagens.
……………………………………………………….
A corrupção deforma o sentido republicano de prática política,compromete a integridade dos valores que informam e dão significado à própria ideia de República, frustra a consolidação das instituições, compromete a execução de políticas públicas em áreas sensíveis como as da saúde, da educação, da segurança pública e do próprio desenvolvimento do País, além de afetar o próprio princípio democrático.
Daí os importantes compromissos internacionais que o Brasil assumiu em relação ao combate à corrupção, como o evidencia a subscrição, por nosso País, da Convenção Interamericana contra a Corrupção (celebrada na Venezuela em 1996) e da Convenção das Nações Unidas (celebrada em Mérida, no México, em 2003).
As razões determinantes da celebração dessas convenções internacionais (uma, de caráter regional, e outra, de projeção global)residem, basicamente, na preocupação da comunidade internacional com a extrema gravidade dos problemas e das consequências nocivas decorrentes da corrupção para a estabilidade e a segurança da sociedade, eis que essa prática criminosa enfraquece as instituições e os valores da democracia, da ética e da justiça, além de comprometera própria sustentabilidade do Estado democrático de direito,considerados os vínculos entre a corrupção e outras modalidades de delinquência, com particular referência para a criminalidade organizada, a delinquência governamental e a lavagem de dinheiro.
……………………………………………………….
Esses vergonhosos atos de corrupção parlamentar,profundamente lesivos à dignidade do ofício legislativo e à respeitabilidade do Congresso Nacional, alimentados por transações obscuras idealizadas e implementadas em altas esferas governamentais,com o objetivo de fortalecer a base de apoio político e de sustentação legislativa no Parlamento brasileiro, devem ser condenados e punidoscom o peso e o  rigor das leis desta República, porque significamtentativa imoral e ilícita de manipular, criminosamente, à margem do sistema constitucional, o processo democrático, comprometendo-lhe a integridade, conspurcando-lhe a pureza e suprimindo-lhe os índices essenciais de legitimidade, que representam atributos necessários para justificar a prática honesta e o exercício regular do poder aos olhos dos cidadãos desta Nação.
Esse quadro de anomalia, Senhor Presidente, revela as gravíssimasconsequências que derivam dessa aliança profana, desse gesto infiel e indigno de agentes corruptores, públicos e privados, e de parlamentares corruptos, em comportamentos criminosos, devidamente comprovados, que só fazem desqualificar e desautorizar, perante as leis criminais do País, a atuação desses marginais do Poder.
………………………………………………………”

Nenhum comentário:

Postar um comentário