Um pouco de conhecimento jurídico e histórico.
Fonte: O Estado de São Paulo
A indignação em vista do descalabro moral e gerencial do
governo veio à tona com a elevada rejeição da presidente. Fala-se cada vez mais
em impeachment, cassação do seu mandato pelas vias legais.
Em entrevista concedida por José Dirceu em junho de 1992 ao
programa Roda Viva, disse o então deputado: "Não se faz impeachment na
Câmara e no Senado, ele acontece na sociedade; eu disse e quero repetir que o
impeachment não se resolve no Congresso Nacional, se resolve nas ruas e se
resolve com uma coalizão político-partidária".
Porém, além dos fatores sociais e políticos, consistentes no
apoio das ruas e na expressiva maioria parlamentar, há de se ter, para o
impeachment, a acusação de ação ou omissão enquadrável em algum dos 65 tipos de
conduta descritos na Lei n.º 1.079, de 1950. Nos governos Lula e no primeiro
mandato de Dilma, poder-se-ia encontrar a violação ao dever de probidade na
administração pela ausência de zelo da moralidade administrativa, não se
tornando efetiva a responsabilidade dos subordinados em face de delitos
funcionais, tal como preceitua o artigo 9o, item 3, da Lei 1.079.
Primeiramente, entendo que as infrações políticas que podem
levar ao impeachment são exclusivamente previstas na forma dolosa, ou seja,
intencional. Assim, os fatos devem revelar a intenção do governante de não
tomar providências em vista da improbidade cometida por subordinados, o que
circunstâncias a seguir lembradas podem indicar.
Em 2009, sendo Lula presidente da República e Dilma chefe da
Casa Civil e presidente do Conselho de Administração da Petrobrás, instalou-se
no Senado a CPI da Petrobrás, tendo em vista, principalmente, relatórios do
Tribunal de Contas da União (TCU) revelando sobrepreços na obra da
Refinaria
Abreu e Lima. No dia da instalação da CPI, Lula declarou que a comissão não era
do Senado, era do PSDB, e só impatriotas punham a Petrobrás em investigação,
tendo a certeza de não haver irregularidades na empresa e Dilma,
"revoltada", afirmou que a Petrobrás tinha a contabilidade das mais
apuradas do mundo.
Lula interferiu na composição da CPI, combinando com o líder
do PMDB, Renan Calheiros, a indicação da relatoria para o sempre governista
Romero Jucá, ambos possíveis beneficiários dos desvios, segundo o procurador da
República. Fernando Collor fazia parte da CPI e foi cooptado por Lula em troca
do poder de nomear dois diretores da BR Distribuidora, suspeita de repassar
importâncias ao senador. Os diretores sugeridos por Collor foram aprovados pelo
conselho de administração presidido por Dilma. Estava tudo armado para o
ocultamento.
Romero Jucá, no relatório da CPI, concluiu que as indicações
de sobrepreço na Abreu e Lima decorriam da aplicação equivocada de índices pelo
TCU, certo de que o tribunal viria a concordar com suas assertivas.
Lula e Dilma trabalharam para o fracasso das investigações
do Senado e sabiam de tudo, segundo o doleiro Alberto Youssef. Na CPI
encobriram-se irregularidades que só vieram à tona em março de 2014, sem
nenhuma contribuição do governo Dilma. Já presidente da República, Dilma
manteve a diretoria que administrava a Petrobrás, deixando que continuassem a
surrupiar quantias astronômicas, impossíveis de não ser percebidas, e em parte
desaguadas na tesouraria do seu partido.
Mas mesmo que fique configurada conivência da presidente com
os malfeitos, ao deixar sem apuração os desvios ao longo do tempo,
tipificando-se, eventualmente, a conduta descrita no artigo 9o, item 3, acima
lembrado, todavia, essa omissão dolosa teria ocorrido no período passado. A
pena do impeachment visa a exonerar o presidente por atos praticados no
decorrer do mandato. Findo o exercício da Presidência, não se pode retirar do
cargo aquele cujo governo findou. Diz o artigo 15 da Lei do Impeachment que a
denúncia deverá ser recebida se o denunciado não tiver, por qualquer motivo,
deixado o cargo. E Dilma deixara o cargo de presidente por ter terminado o
mandato, tomando posse de outro, que se iniciou em 1o de janeiro com faixa
presidencial e juramento.
Assim, se há manifestações nas ruas e grave crise de
governabilidade, complicada por inflação e estagnação, falta, no entanto, fato
concreto entre janeiro e março deste ano constitutivo de infração política a
justificar o impeachment. Com tempo para agir, o governo repensa a não
aplicação da Lei Anticorrupção às empresas, que poderia levar ao impeachment,
como bem suscitou Modesto Carvalhosa. Se não há crime de responsabilidade, pode
haver crime comum, por ora com pedido de arquivamento.
Na entrevista de 1992 ao Roda Viva, José Dirceu disse ser
uma via a renúncia de Collor em razão de não ter "condições éticas e
políticas de continuar governando o País". Tal sucede com Dilma. Há uma
revolta em face da imoralidade do "desgoverno". Soma-se o amplo
espectro político da corrupção revelado pelo procurador-geral da República, com
ministros, presidentes do Legislativo e outros líderes do Congresso Nacional
investigados no escândalo. Houve um ataque frontal à democracia com
promiscuidade organizada entre Executivo e Legislativo. As bases da República
foram corroídas no seu cerne. Apodreceram o Brasil.
No próximo dia 15, a passeata dos indignados deve clamar por
patriótica e ampla renúncia. Dilma não tem condições éticas e políticas para
governar, carente de qualquer credibilidade pelo passado nefasto e por ausência
de autoridade moral: é apenas a triste condutora de sua herança maldita com um
séquito de ex-ministros investigados.
A saída da crise é ainda mais estreita com representação do
procurador-geral, pois Eduardo Cunha e Renan também devem renunciar à
presidência de suas Casas. Malgrado a presunção de inocência, não contam com as
imprescindíveis confiança e independência para desinfetar o Brasil.
Renúncia já: a única via em busca de pacto sério para
reconstrução do País.
*ADVOGADO, PROFESSOR TITULAR SENIOR DA FACULDADE DE DIREITO
DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, FOI MINISTRO DA JUSTIÇA