O fervor religioso é uma arma assustadora, encontramos sempre pessoas armadas deste fervor dispostas a disparar contra os que não compartilham dos mesmos pensamentos.
Fonte: Folha
Sou ateu e mereço o mesmo
respeito que tenho pelos religiosos.
A humanidade inteira segue uma
religião ou crê em algum ser ou fenômeno transcendental que dê sentido à
existência. Os que não sentem necessidade de teorias para explicar a que viemos
e para onde iremos são tão poucos que parecem extraterrestres.
Dono de um cérebro com capacidade
de processamento de dados incomparável na escala animal, ao que tudo indica só
o homem faz conjecturas sobre o destino depois da morte. A possibilidade de que
a última batida do coração decrete o fim do espetáculo é aterradora. Do medo e
do inconformismo gerado por ela, nasce a tendência a acreditar que somos
eternos, caso único entre os seres vivos.
Todos os povos que deixaram
registros manifestaram a crença de que sobreviveriam à decomposição de seus
corpos. Para atender esse desejo, o imaginário humano criou uma infinidade de
deuses e paraísos celestiais. Jamais faltaram, entretanto, mulheres e homens avessos
a interferências mágicas em assuntos terrenos. Perseguidos e assassinados no
passado, para eles a vida eterna não faz sentido.
Não se trata de opção ideológica:
o ateu não acredita simplesmente porque não consegue. O mesmo mecanismo
intelectual que leva alguém a crer leva outro a desacreditar.
Os religiosos que têm dificuldade
para entender como alguém pode discordar de sua cosmovisão devem pensar que
eles também são ateus quando confrontados com crenças alheias.
Que sentido tem para um
protestante a reverência que o hindu faz diante da estátua de uma vaca dourada?
Ou a oração do muçulmano voltado para Meca? Ou o espírita que afirma ser a
reencarnação de Alexandre, o Grande? Para hindus, muçulmanos e espíritas esse
cristão não seria ateu?
Na realidade, a religião do
próximo não passa de um amontoado de falsidades e superstições. Não é o que
pensa o evangélico na encruzilhada quando vê as velas e o galo preto? Ou o
judeu quando encontra um católico ajoelhado aos pés da virgem imaculada que
teria dado à luz ao filho do Senhor? Ou o politeísta ao ouvir que não há
milhares, mas um único Deus?
Quantas tragédias foram
desencadeadas pela intolerância dos que não admitem princípios religiosos
diferentes dos seus? Quantos acusados de hereges ou infiéis perderam a vida?
O ateu desperta a ira dos
fanáticos, porque aceitá-lo como ser pensante obriga-os a questionar suas
próprias convicções. Não é outra a razão que os fez apropriar-se indevidamente
das melhores qualidades humanas e atribuir as demais às tentações do Diabo.
Generosidade, solidariedade, compaixão e amor ao próximo constituem reserva de
mercado dos tementes a Deus, embora em nome Dele sejam cometidas as piores
atrocidades.
Os pastores milagreiros da TV que
tomam dinheiro dos pobres são tolerados porque o fazem em nome de Cristo. O
menino que explode com a bomba no supermercado desperta admiração entre seus
pares porque obedeceria aos desígnios do Profeta. Fossem ateus, seriam
considerados mensageiros de Satanás.
Ajudamos um estranho caído na
rua, damos gorjetas em restaurantes aos quais nunca voltaremos e fazemos
doações para crianças desconhecidas, não para agradar a Deus, mas porque
cooperação mútua e altruísmo recíproco fazem parte do repertório comportamental
não apenas do homem, mas de gorilas, hienas, leoas, formigas e muitos outros,
como demonstraram os etologistas.
O fervor religioso é uma arma
assustadora, sempre disposta a disparar contra os que pensam de modo diverso.
Em vez de unir, ele divide a sociedade - quando não semeia o ódio que leva às perseguições
e aos massacres.
Para o crente, os ateus são
desprezíveis, desprovidos de princípios morais, materialistas, incapazes de um
gesto de compaixão, preconceito que explica por que tantos fingem crer no que
julgam absurdo.
Fui educado para respeitar as
crenças de todos, por mais bizarras que a mim pareçam. Se a religião ajuda uma
pessoa a enfrentar suas contradições existenciais, seja bem-vinda, desde que
não a torne intolerante, autoritária ou violenta.
Quanto aos religiosos, leitor, não os considero
iluminados nem crédulos, superiores ou inferiores, os anos me ensinaram a
julgar os homens por suas ações, não pelas convicções que
apregoam.
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