Alunos dão lição sobre privacidade na web a juiz
"Aprendizado prático". Uma bela frase, repleta de esperança, que descreve lições aprendidas na vida real que ajudam a iluminar as questões de um tema acadêmico - o oposto de "aprendizado teórico". No segundo trimestre deste ano, os alunos de uma matéria optativa sobre privacidade na internet que consta do currículo da escola de Direito da Universidade Fordham passaram por diversos desses fascinantes momentos de aprendizado prático, como parte de um trabalho cujo objetivo era demonstrar o grande volume de informações pessoais que corre pela internet.
O trabalho, que lhes foi prescrito pelo professor encarregado do curso, Joel Reidenberg, era assumidamente provocativo: criar um dossiê sobre o juiz Antonin Scalia, da Suprema Corte dos Estados Unidos, com base nas informações disponíveis sobre ele na rede. E por que Scalia?
Bem, os alunos vinham discutindo as recentes declarações que ele fez desconsiderando as preocupações sobre a defesa da privacidade na internet, em uma conferência jurídica recente. De acordo com a agência de notícias Associated Press, Scalia resumiu a questão com: "Todos os dados que existem sobre minha vida são privativos? Isso é tolice".
E isso quer dizer que uma espécie de desafio foi lançado - ainda que Reidenberg tenha declarado em entrevista que discorda dessa interpretação. O trabalho, ele disse, não tinha por objetivo "causar embaraços a ninguém, e tampouco tomar Scalia por alvo em função de qualquer assunto referente ao seu trabalho na Corte". (O professor também não demorou a lembrar que, no ano passado, o mesmo trabalho havia sido prescrito aos alunos, mas tendo ele, Reidenberg, como assunto.)
Scalia era uma boa escolha: uma figura muito pública, com bons motivos para resguardar sua privacidade. Encontrar o número da linha direta de telefone de seu gabinete, por exemplo, é tarefa quase impossível.
Mas os alunos conseguiram montar um dossiê de 15 páginas, informou Reidenberg em conferência sobre defesa de privacidade, que incluía o endereço e o número de telefone da casa de Scalia, o endereço pessoal de e-mail de sua mulher e os programas de TV e pratos que ele prefere.
Como não considerar que a criação desse dossiê tem um aspecto de justiça poética. O senhor ainda considera que a questão é "tolice", meritíssimo? Aprendizado prático, afinal, não se aplica apenas aos alunos.
A idéia jamais foi divulgar publicamente o dossiê (ainda que, como aponta o professor, já que a lei protege apenas material recolhido para avaliar um candidato a emprego, divulgá-lo seria legal), e Scalia não deveria saber sobre o trabalho acadêmico, mais ou menos como muitos de nós nos mantemos absurdamente desatentos a tudo que se pode descobrir sobre nossas vidas por meio da internet.
Os comentários de Reidenberg na conferência foram registrados por um site chamado Above the Law, e com isso a questão se tornou pública, ajudada pela manchete "o que a Universidade Fordham sabe sobre o juiz Scalia".
Outro momento de aprendizado prático. Reidenberg estava falando sobre a perda de "obscuridade prática", ou seja, a idéia de que certas informações pessoais talvez tenham estado sempre disponíveis - por exemplo, nos registros judiciais -, mas descobri-las e disseminá-las sempre foi complicado na prática.
"Eu estava apresentando um trabalho acadêmico em uma conferência acadêmica, sobre a perda de obscuridade prática, e o exemplo que utilizei foi tirado do contexto e virou reportagem nacional", disse o professor.
Quando as informações sobre o dossiê chegaram à imprensa, Reidenberg ofereceu exibir a Scalia o material recolhido, mas o juiz não respondeu.
A privacidade, e sua violação, são assunto de discussão há milênios. As declarações de Scalia sobre a questão foram feitas em um evento que tratava do direito à privacidade e liberdade individual da antiguidade à era da internet. Mas a tecnologia vem pressionando nossas leis, e as soluções nem sempre são fáceis.
É valioso, por exemplo, descobrir quem foi detido recentemente por embriaguez ao volante, mas vivemos em um mundo no qual é possível rapidamente obter o endereço e foto de qualquer criminoso sexual ou pessoa que tenha sido apanhada embriagada ao volante em um raio de cinco quilômetros. Não é apenas que a informação pessoal circule o mundo e possa ser obtida por qualquer pessoa dotada de uma conexão de internet, mas também o imenso volume de informações disponível.
"No caso individual, poderia ser inócuo saber, por exemplo, que prefiro Coca-Cola a Pepsi", diz Daniel Solove, professor de Direito na Universidade George Washington. "Mas quando há um acúmulo de informações, a coisa muda de figura. Se existe um registro de tudo que alguém comprou ao longo dos anos, é possível fazer inferências sobre a saúde, a situação financeira e os interesses da pessoa".
Chris Reid, aluno de terceiro ano da Fordham que fez o curso de Reidenberg no ano passado, disse que seus colegas quase todos tendem a não se preocupar com a privacidade na internet, "mas nossa geração precisa receber um alerta a respeito". "As pessoas estão dispostas a abrir mão de muita privacidade em troca de um pequeno benefício. Elas não conhecem o custo completo", afirmou.
Scalia recusou um pedido de entrevista, por meio de um porta-voz, mas respondeu à questão em um comunicado: "Mantenho minha declaração de que é tolice imaginar que todos os dados sobre minha vida sejam privativos. Estava me referindo, é claro, à questão de cada um desses dados merecer proteção legal", afirmou. "Não é um fenômeno raro que algo seja ao mesmo tempo legal e irresponsável. A questão surge o tempo todo em casos quanto ao direito de livre expressão. E porque o professor não estava lecionando um curso sobre bom senso, presumo que tenha suposto que não precisava demonstrá-lo".
Um momento de aprendizado prático, mas talvez não de sabedoria.
fonte: www.terra.com.br
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