segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Entrevista com a ex-ministra Ellen Gracie Northfleet.


Fonte: Veja
Recém-aposentada do Supremo Tribunal Federal, a ex-ministra Ellen Gracie Northfleet, primeira mulher a integrar a corte em 122 anos de República, fala com franqueza nesta entrevista sobre os bastidores do Supremo, sobre o casamento gay, a lentidão da Justiça, a dificuldade de punir quem comete crimes e, entre outros temas, se o tribunal tem ou não poder demais.

A entrevista foi feita pelos de VEJA Carlos Graieb e Paulo Celso Pereira, e publicada nas “Páginas Amarelas” da edição que ainda está nas bancas nesta sexta-feira, dia 2.



“É o poder menos corrupto”

A ministra que acaba de sair do Supremo Tribunal Federal avalia o papel do Judiciário no cumprimento das leis e na manutenção das liberdades e direitos constitucionais

A juíza Ellen Gracie Northfleet, de 63 anos, entregou há três semanas seu pedido de aposentadoria do Supremo Tribunal Federal (STF). Indicada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2000, Ellen foi a primeira mulher a chegar à mais alta corte do país. Ao longo de dez anos e meio, proferiu cerca de 30 000 decisões, presidiu o STF e o Conselho Nacional de Justiça e foi vice-presidente do Tribunal Superior Eleitoral. A ministra poderia continuar no tribunal até 2018, mas ela se considera “muito realizada”.

Apesar de ter se formado e construído a carreira no Rio Grande do Sul — onde moram a única filha e a neta –, Ellen está a caminho do Rio de Janeiro natal. A curto prazo, vai retomar o registro na Ordem dos Advogados do Brasil para trabalhar com pareceres, consultoria e arbitragem. Segue o desejo, no entanto, de ser nomeada para um fórum internacional. Em 2008, ela foi derrotada na disputa por um assento na Corte de Apelação da Organização Mundial do Comércio (OMC). “Se houver uma oportunidade, vou analisar”, diz a ex-ministra. “Mas não em qualquer lugar. Não estou fugindo do país.”

No seu apartamento em Brasília, ela concedeu a seguinte entrevista a VEJA.

Foram quase onze anos no Supremo. O tribunal mudou muito nesse tempo?

Creio que a corte de 10 anos atrás era mais contida, mais dada ao judicial restraint, uma expressão em inglês que indica um esforço para não se substituir ao legislador. Acontece que a demanda para que o STF resolvesse impasses políticos também era menor. Hoje, há temas controversos que o Congresso não aborda. Os parlamentares não querem se comprometer com uma posição. As demandas, então, vão parar no Supremo, que não tem outra saída senão decidir sobre tais assuntos.

Há também o famoso “terceiro turno” – quando a minoria vencida no Legislativo recorre à Corte para reverter ou amenizar a derrota. Eu não diria que existe no STF uma atitude concertada para adotar o ativismo judicial. Alguns ministros — muito bem amparados na doutrina e na técnica — avançam mais nessa direção. Outros, menos. Não vejo, contudo, um inte­resse em aumentar o poder do Supremo. Nosso poder já é bem grande. O certo é que nesses últimos dez anos foram as circunstâncias que fizeram do dilema entre ativismo e contenção um aspecto central para a Corte.

Uma das decisões em que o ativismo do Supremo ficou mais patente é aquela que confere o status de família à união estável entre pessoas do mesmo sexo. A Constituição é explícita em dizer que a família no Brasil é formada por homem e mulher. A corte reescreveu a Carta Magna?

O Brasil, desde o pórtico de sua Constituição, diz que não admite discriminação. Então não há motivo para que concidadãos nossos sejam tratados de maneira diferente por causa de sua orientação sexual. Assim como nós não admitiríamos que eles fossem tratados diversamente por questões de cor ou de religião, também a orientação sexual não deve ser um fator impeditivo a que eles gozem de isonomia em relação aos outros cidadãos.

Essa é a base da decisão. Um país decente não discrimina entre os seus cidadãos. Meu voto foi no sentido de que todos os direitos correspondentes a uma união estável entre pessoas de sexo oposto sejam estendidos aos homossexuais, inclusive o direito de adoção. Mas as discussões sobre os direitos dos homossexuais ainda não terminaram no Supremo, elas certamente voltarão ao plenário.

A senhora foi a primeira mulher a assumir uma cadeira no tribunal. É importante que uma mulher a substitua?

Acredito que a sociedade brasileira entrou em outra fase. Neste momento, o país é presidido por uma mulher. No Supremo, temos ainda a ministra Cármen Lúcia. O peso simbólico de uma escolha feminina já não é tão grande. Se a presidente quiser escolher uma mulher, no entanto, sua gama de alternativas será bem grande. O Judiciário brasileiro se destaca no mundo porque 30% da primeira instância são formados por mulheres, e quase o mesmo porcentual se repete na segunda instância. Existe uma massa crítica muito boa da qual a presidente poderá tirar um nome feminino, se tal for a sua vontade.

O Supremo vivia atulhado de processos. Essa questão foi equacionada?

Até 1988, o Supremo podia escolher os casos que iria analisar. Isso mantinha o número de processos em um patamar manejável. A Constituição de 1988 tirou essa prerrogativa da Corte. Além disso, por ser muito detalhista, a Carta permite que os advogados sempre encontrem uma raiz constitucional para os seus pleitos. Desde a faculdade, eles são orientados a incluir questões constitucionais em suas petições, de modo que a causa possa mais tarde subir até o Supremo.

Tudo isso acarretou uma explosão do número de causas que tramitam na corte. Em meados da década passada, chegou a haver 150 000 processos distribuídos entre os gabinetes dos ministros. Isso torna inviável o trabalho de uma corte constitucional. Houve, no entanto, um divisor de águas que nos levou de volta ao bom caminho. Estou falando da Emenda [Constitucional nº] 45 [que promoveu uma reforma no Judiciário e, entre outras coisas, criou o Conselho Nacional de Justiça] e das leis que a regulamentaram, permitindo o uso da repercussão geral e da súmula vinculante. Depois disso, houve uma clara redução de números. Em 2010, apenas 15 000 processos foram distribuídos. É muito, em comparação com outros países, mas um avanço inegável para nós.

Se o instrumento é eficaz, por que é pequeno o número de súmulas publicadas?

Sou uma defensora da adoção das súmulas vinculantes há trinta anos. Sou também muito restritiva no uso dessa ferramenta. Não há contradição aí. As súmulas diminuem o número de processos que chegam ao Supremo na exata medida em que aumentam a segurança jurídica. Para que desempenhem esse papel, é fundamental que sejam muito precisas. Se a súmula não é feita com cuidado e enseja uma nova dúvida, ela não cumpre o seu papel de estabelecer uma jurisprudência que permita que processos semelhantes ao analisado sejam julgados com mais rapidez e não cheguem mais às instâncias superiores. Isso às vezes acontece. Há súmulas que os próprios ministros quiseram reescrever já no dia seguinte à publicação. Por isso, o tribunal está certo em não se apressar na edição de súmulas.

Em maio, o tribunal determinou a prisão do jornalista Pimenta Neves, onze anos depois do assassinato que ele confessou. Com a redução no número de processos, o Supremo tende a decidir com maior velocidade?

O grande problema do Judiciário hoje é a lerdeza. As ações demoram muito, especialmente as penais. O sistema de recursos e nulidades do processo penal brasileiro é inacreditável, quase impede uma condenação. Um bom advogado tem à sua disposição um arsenal quase infinito de manobras para dificultar o desenvolvimento do processo.

Ou seja, a culpa não é exclusivamente do Judiciário. Mas nós também temos nossa parcela de responsabilidade. Deveríamos nos equipar, ter mais juízes criminais. E acredito que, mesmo na Corte suprema, nem sempre tomamos a melhor decisão. Em 2009, por exemplo, o tribunal alterou sua jurisprudência com relação à possibilidade de cumprimento das penas logo depois depois da confirmação da sentença em segundo grau. Até então, o tribunal sempre tinha entendido que, confirmada a sentença no Tribunal de Justiça [dos Estados], nada impedia o início da execução. Em 2009, isso mudou. Não concordei com essa posição e discordo dela até hoje.

A senhora é considerada linha-dura em questões penais. Concorda com essa definição?

Sou rigorosa em matéria penal. Acho que é preciso ser. No Brasil, depois da redemocratização, passamos por um período de rechaço absoluto a tudo que significasse repressão. Mas qualquer país democrático precisa ter repressão ao crime. É preciso que haja consequência para o delito, que o Direito Penal seja efetivo. No entanto, quando for aplicada a pena, é necessário que o sistema prisional cumpra sua finalidade de ressocialização. As penas não existem apenas para punir. Elas devem preparar a pessoa para que saia em condições de ser reabsorvida pela sociedade. E isso não acontece até hoje.

A lerdeza que a senhora mencionou também dificulta o combate à corrupção, e ajuda a disseminar o sentimento de que corruptos, especialmente políticos, não são punidos no Brasil. O julgamento do mensalão, que se aproxima, vai mudar esse roteiro?

Eu não vou participar do julgamento do mensalão, e não me arrisco a prever seu desfecho. Se não me engano, já foi decretada a prescrição de um crime. Outros réus talvez sejam condenados a penas pequenas que, pela passagem do tempo, não será viável executar.

De modo geral, contudo, esse processo andou de maneira célere no Supremo. O relator, ministro Joaquim Barbosa, já ouviu 600 testemunhas em dois anos. Nenhuma vara criminal neste país teria tido capacidade para fazê-lo. Isso foi possível, em parte, porque houve a digitalização completa do processo.

Minha primeira observação, portanto, é que mudanças nos métodos de trabalho podem trazer resultados fantásticos. O Judiciário ainda lida com práticas herdadas do século XIX, mas estamos nos livrando de muitas delas, o que deve racionalizar nosso trabalho. Em segundo lugar, o papel do Supremo não é punir, mas julgar de maneira correta e respeitar as garantias que são de todos os cidadãos. Não podemos cercear a defesa, nem passar por cima dos direitos dos acusados. Isso talvez crie frustrações momentâ­neas, mas, a longo prazo, a consolidação das instituições democráticas é o que importa.

Nos últimos anos, houve algumas dis­cussões muito ríspidas entre ministros. O clima no Supremo é tenso?

O tribunal está em paz. E, em geral, o convívio entre os ministros é muito bom. Discussões acaloradas sempre ocorreram na Corte — a diferença é que atualmente, com a televisão, as reações mais exaltadas ficam à vista de todos.

É bom que as sessões do Supremo sejam transmitidas ao vivo pela TV?

Se os ministros tivessem podido votar sobre o assunto lá atrás, quando o canal foi ao ar, acredito que a maioria teria sido contrária. Eu mesma não teria aprovado a ideia. Sempre que um juiz estrangeiro visita o Brasil, a transmissão das sessões ao vivo causa espanto. É algo que não existe em outros lugares. Para muitos, é uma subversão da lógica de funcionamento de uma Corte suprema. Há tribunais que mantêm em segredo até o nome do relator de um processo.

Mas agora os benefícios da televisão estão claros. Ela dá grande transparência à Justiça. Essa transparência é importante, não é possível regredir. Durante a minha presidência, discutimos a possibilidade de editar as sessões. Mas aí ficamos com um problema seriíssimo: quem faria essa edição? Quem haveria de cortar a palavra deste ou daquele ministro? Mantivemos o formato, que está bem aceito pela comunidade jurídica. Mesmo que às vezes deixe os ministros muito expostos.

Quando a senhora entrou no Supremo, ainda havia ministros indicados pelo governo militar. Com sua saída, restam apenas três ministros indicados antes do governo Lula. Quanto a indicação influencia a trajetória de um ministro na corte?

Pertencer ao Supremo, o topo da pirâmide judiciária, é uma dignidade tão grande que não admite vinculações, subordinações, sujeições a nenhuma outra instância. A melhor homenagem que um ministro pode fazer ao presidente que o nomeou é ser um bom juiz. Ou seja, um juiz isento.

Não vejo ninguém atrelado à mesma linha do governo que o nomeou. Seria uma pessoa menor aquela que se atrelasse a uma linha político-partidária. O Supremo faz, sim, política. Mas política ampla, de desenvolvimento nacional, de contribuição ao crescimento do país, de atenção às realidades nacionais. A primeira virtude de um juiz tem de ser a independência. E a independência não é coisa abstrata. É independência do poder econômico, do poder político, do poder da imprensa e da opinião pública, independência dos próprios preconceitos. Felizmente, vejo essa independência posta em prática diariamente não apenas no Supremo, mas em todo o Judiciário, que é o menos corrupto dos poderes.
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